Seria lícito ao ser humano julgar?
Teria Deus dotado o indivíduo da Virtude de arbitrar sobre pessoas, ideias, condutas, atos ou fatos?
Preconizam as Escrituras:
“ Quão belo é para a velhice O SABER JULGAR” (Eclesiástico 25, 6)”
Mas em sentido aparentemente contrário:
“ Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados. (São Lucas 6.37) ”
Ora, no âmbito da lei eterna, existem três espécies de juízos, sendo dois deles lícitos e um ilícito.
O primeiro, que é lícito a todos, é o juízo da arbitragem venturosa.
Outro juízo lícito, mas restrito aqueles instituídos por Deus com autoridade não apenas para julgar pessoas, fatos e atos, mas também aplicar sanções aos infratores, infiéis e desobedientes, é o veredicto judiciário e/ou eclesiástico.
Há ainda um juízo proibitivo que é o temerário.
O juízo moral que é a arbitragem venturosa, pertence à virtude da prudência.
Moralidade (rectius) é o limite estabelecido sobre a vontade e o instinto humano, atuando muitas vezes em oposição deste, visando garantir que a liberdade seja movida a um fim útil, privado ou público.
Assim, o ato de julgar virtuosamente, é imperiosamente necessário a todos, para que possam distinguir entre o Bem e o mal, sem o qual, tornar-se-ia impossível repelir os feitos da malícia para a prática das obras virtuosas:
“ conceda ao vosso servo um coração sábio, CAPAZ DE JULGAR o vosso povo e DISCERNIR ENTRE O BEM E O MAL; pois sem isso, quem poderia julgar o vosso povo, um povo tão numeroso? (I Reis 3, 9) “
O ser espiritual, pelo hábito da Virtude e da Ciência da Beatitude Divina, é capaz de julgar a tudo retamente, exercendo análise comparativa prévia entre várias alternativas, com a finalidade de discernir entre o benefício e o malefício.
O indivíduo só pode ser chamado de justo, se dele emergir exteriormente atos harmônicos a Justiça Perfeita de Deus, ínsita no cumprimento dos seus princípios e mandamentos.
Julgar é uma potência cognitiva, e, portanto, inerente apenas aos seres racionais e livres, pois toda escolha antecede a um juízo, e as escolhas, tais como os juízos, estão no âmbito do arbítrio livre.
O juízo é próprio do ser humano, por ser um atributo da razão.
Só a razão do homem espiritual pode apontar o certo e o errado aos olhos de Deus.
Apenas o ser racional pode exercer certa comparação entre duas ou mais realidades possíveis: O BEM e o mal.
” Será possível que não há entre vós um homem sábio, nem um sequer que possa julgar entre seus irmãos? (I Coríntios 6, 5) ”
Se há no ser humano uma razão dada por Deus, haverá por consequência, o juízo sobre todas as coisas, e sobre si próprio.
” Não sabeis que os santos julgarão o mundo? E, se o mundo há de ser julgado por vós, seríeis indignos de julgar os processos de mínima importância? (I Coríntios 6, 2) ”
Julgar moral e retamente pelos olhos do Espírito Santo é o que nos afasta do perigo, evitando que o perverso e falso tornem-se empecilho a nossa condução segura à salvação.
Desprezar esse juízo, implica renunciar a distinção entre o Bem e o mal, incorrendo no risco consciente de aderir aos vícios e a maldade, dando azo ao pecado da TIBIEZA, que é a negligência voluntária em fazer o Bem e se afastar o mal, o que conduzirá a ausência de temor a Deus:
“ O amor causa o desejo do bem ausente e a esperança de consegui-lo. Este movimento se completa no prazer e na alegria do bem possuído. A percepção do mal provoca ódio, aversão e medo do mal que está por chegar. (CATECISMO § 1.765, T 4.6. Do Temor) ”
Julgar é uma operação irrenunciável, posto que escolher a Justiça, Perfeição e Beatitude é obrigação de todo fiel a Deus.
Aderir a Justiça, o que pressupõe uma escolha prévia, é obrigação comum e universal de todo aquele que crê, pois, a busca da Perfeição não pode se dar desvinculada da reta justiça, a qual só se realiza mediante adesão à Vontade Soberana de Deus.
Mas o juízo realizado para aplicar penas e reprimendas, não compete a todos, indistintamente, senão apenas aqueles a quem Deus instituiu.
Neste sentido, temos o juízo eclesiástico e o seu desdobramento que é o veredicto judiciário.
Ora, nenhum ser humano é sem pecado para ter autoridade NATURAL para julgar o pecado alheio, senão através da Autoridade Divina que Deus lhe delega.
Quem peca não pode, por autoridade própria julgar o pecado alheio.
Essa delegação de Deus, que é um poder transmitido temporalmente a alguns para proferir decisões pessoais e diretas sobre seus semelhantes, fora outorgada aos Magistrados e Sacerdotes.
Todo juiz, membro da Magistratura, embora agente estatal, é também ministro de Deus, porque a ele incumbe julgar pelo reto juízo que disciplina a Lei Divina, Perfeita e Eterna, segundo a autoridade que lhe fora atribuída.
Embora a Justiça dos santos seja mais perfeita que a justiça institucionalizada; e a Justiça Perfeitíssima de Deus transcender tanto uma, quanto outra, é certo que ao buscar a Justiça nos casos individuais, trazem os Magistrados como efeito, a Justiça coletiva como Bem Comum.
A ordem, disciplina, licitude, decência, equidade e honestidade que há eternamente na Perfeição de Deus, haverá de se refletir também nesta terra:[1]
“ Terão de julgar; e o farão conforme ao meu Direito. (Ezequiel 44.24) ”
Do sistema jurídico terreno estabelecido por Deus, depende todo mecanismo que sustenta a conservação da ordem e da subsistência de todas coisas criadas.
“Junta-me setenta homens entre os anciãos de Israel, que sabes serem os anciãos do povo e tenham autoridade sobre ele. Conduze-os à tenda de reunião, onde estarão contigo. (Números 11, 16)”
“ Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. (Romanos 13, 1)”
“Por amor do Senhor, sede submissos, pois, a toda autoridade humana, (I São Pedro 2, 13)”
“Em verdade, as autoridades inspiram temor, não, porém, a quem pratica o Bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que temer a autoridade? Fazes o Bem e terás o seu louvor. (Romanos 13, 3)”
A Justiça humana só tem sentido, quando cumpre seu desiderato que é conduzir a sociedade e o indivíduo ao alinhamento e comunhão com a Vontade de Deus, como instrumento que os conduzirá a Pátria Celestial.
“ Pelos reis e por todos os que estão constituídos em autoridade, para que possamos viver uma vida calma e tranquila, com toda a piedade e honestidade. (I Timóteo 2, 2)”
Não por outra razão, a corrupção do julgador é mais grave que a corrupção do réu que ele julga.
A autoridade sacerdotal, cujos detentores são os que receberam por sucessão apostólica[2] o Poder das Chaves, dado diretamente por Cristo para perdoar ou não os pecados, proclamar a exclusão de um pecado pertinaz e não contrito do Corpo de Cristo, aplicar outras sanções que impeçam o recebimento dos sacramentos e alguns outros atos eclesiais, de igual modo tem por objetivo preservar a ordem, a obediência, a verdade, e principalmente salvaguardar os convertidos da má influência dos apóstatas, hereges e ímpios dentro da Igreja:
“ Pois que tenho eu de julgar os que estão fora? NÃO SÃO OS DE DENTRO QUE DEVEIS JULGAR? (I Coríntios 5, 12)”
https://magisteriotradicaoescrituras.com/2018/07/12/o-primado-de-sao-pedro-na-entrega-das-chaves/
Mas a par desses dois juízos lícitos, o geral e o especial, poderíamos dizer que um juízo fundado em mera suspeita seria temerário?
Ora, para quem exerce o juízo eclesiástico ou judiciário (SACERDOTES E MAGISTRADOS), a resposta é SIM, pois o exercício desses dois juízos implicará numa penalidade, seja eclesiástica, civil ou penal.
E não se pode aplicar penas por mera suspeita, senão, por prova robusta da infração pois do contrário, o julgamento seria injusto, condenando-se um inocente.
Ensina Santo Tomás de Aquino:
“ Melhor enganar-se, formando opinião boa de um homem mau, que enganar-se fazendo uma má opinião de um homem bom. (Suma Teológica. Q 60. art. 4. Do Juízo) ”
A suspeita é opinião, palpite incerto sobre um fato mau, e que pode recair sobre a verdade ou a falsidade.
Toda autoridade dada por Deus aos seres humanos para julgar seus semelhantes, desvia de sua reta finalidade quando julga injustamente, sem compromisso com a verdade, injuriando um inocente, e por consequência, privilegiando o verdadeiro delinquente.
No entanto, a própria Doutrina Sagrada excepciona essa regra, quando não se tratar de julgamento eclesiástico ou forense.
Como ainda ensina Santo Tomás:
“ JULGAR COISA É DIFERENTE DE JULGAR PESSOAS. Portanto, onde não aparecem INDÍCIOS MANIFESTOS da malícia de outrem, devemos tê-lo como bom. (Suma Teológica. Q 60, art. 4. Do Juízo) ”
Quando estamos diante do juízo venturoso, que é comum a todos, devemos sim, nos afastar de tudo aquilo que suspeitamos ser malicioso e prejudicial.
Está escrito:
‘ ABSTENDE-VOS DE TODA APARÊNCIA DO MAL. (I Tessalonisenses 5.22) ”
A ausência de pecado, neste caso, assenta no fato de que a suspeição da malícia alheia (não sendo hipótese de juízo forense ou sacerdotal), não resulta condenação a outrem, senão, apenas em prudência e autodefesa para precaver dos efeitos do mal, e impedir a incidência no pecado.
A suspeita não é pecado quando voltada a prudência, evitando sempre o juízo direto e pessoal sobre alguém, que só cabe a Deus, exercido em certos casos pelos Sacerdotes, no perdão dos pecados, e também pelos Magistrados no veredicto segundo as leis temporais, sob pena de se pecar pela usurpação de um Poder que não recebemos do Criador, Juiz dos juízes.
Suspeitar não é pecado, salvo quando temerário, quando se tem a suspeita em má intenção, certeza da inocência ou se serve dessa suspeita para falsear, caluniar, desonrar e obter condenação injusta de alguém por motivo de vingança ou discórdia.
Leciona Santo Tomas:
“Odiando-o; desprezando-o ou invejando-o, pensamos mal do mesmo, fundado em leves indícios, o que manifesta a perversidade dos afetos < > e isso implica injustiça, e, portanto, pecado mortal. (Suma Teológica. Q 60 art. 3. Do Juízo) ”
Neste contexto, Cristo revogou a autoridade dos rabinos no julgamento de Santa Maria Madalena, posto que a julgavam não pela reta Justiça Divina, mas pelo ódio por serem iguais a ela, embora quisessem se passar por santos, desprezo ou até por invejar seu pecado. Assim, ainda que fossem justos os seus juízos, julgavam através do pecado, auto condenando a si próprios.
A prudência e a prevenção não podem evitar a justa suspeita.
É um instinto natural da autodefesa.
Diante disto, é certo que excluindo o juízo temerário, julgar é um processo de seleção racional que se instaura naturalmente na comparação entre o que é bom e mau; perfeito e imperfeito, benéfico e prejudicial, conhecendo-os e distinguindo-os.
Julgar é necessário para que o ser humano possa reger os fatos; e não inversamente ser regido por eles.
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[1] Foi investido da jurisdição eclesiástica e judiciária, que o rei Salomão, que também acumulava a função de Magistrado, decidiu a contenda entre duas mulheres pelo reconhecimento da maternidade sobre uma criança recém-nascida. (Reis 3.16-28 )
[2] Os santos apóstolos faziam sucessores: “Designavam presbíteros em cada congregação. (Atos 14, 23). Migraram depois para Roma: “Apareceu-lhe o Senhor e disse: Coragem! Deste testemunho de mim em Jerusalém, importa também que dês em Roma. (23, 11)”